Erdogan sem maioria <br> para reforçar poder
O Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), do presidente Recep Erdogan, perdeu a maioria no parlamento da Turquia, onde entra pela primeira vez o pró-curdo Partido Democrático do Povo.
O grande responsável pelo recuo do AKP foi o partido pró-curdo
Após 13 anos de domínio absoluto nas urnas, o AKP sofreu, no passado domingo, uma derrota histórica. Os resultados definitivos, divulgados na segunda-feira, 8, acabaram por confirmar o mais áspero dos cenário projectados nas sondagens dias antes do sufrágio: o partido do actual presidente e primeiro-ministro entre 2002 e 2014, Recep Erdogan, perdeu nove pontos percentuais e 71 deputados.
Com 40,7 por cento dos votos e 258 eleitos, o AKP fica a 18 lugares da maioria simples. O grande responsável pelo recuo político-eleitoral da formação islamita-conservadora foi o Partido Democrático do Povo (HDP). Num sufrágio com uma elevada taxa de participação (86 por cento dos cerca de 54 milhões de turcos habilitados a votar), a organização pró-curda conseguiu ultrapassar a barreira dos 10 por cento imposta para entrar no parlamento, e, com 12,98 por cento do conjunto dos boletins, assegurou um grupo parlamentar próprio com 79 deputados em 550.
Os partidos Republicano do Povo (social-democrata) e Acção Nacionalista (direita), segundo e terceiro na consulta popular, com 25,1 e 16,4 por cento, respectivamente, colheram diferentes frutos do revés do AKP. Os primeiros perderam dois deputados face a 2011 (elegeram 133 contra os 135 anteriores); os segundos passaram de 53 para 82 assentos.
Novidade
A imprensa da Turquia e agências noticiosas internacionais especularam, num primeiro momento, sobre a possibilidade de o HDP vir a formar governo com o AKP. Ou, pelo menos, sustentar no hemiciclo um executivo daquele como moeda de troca para avanços no processo de paz com a insurreição curda. No entanto, o líder de facto do partido pró-curdo, Selahattin Demirtas, veio a público rejeitar qualquer aliança com o partido de Erdogan e garantir que a organização será forte oposição ao governo que entrar em funções.
Demirtas obteve 9,76 por cento dos votos nas presidenciais que em Agosto de 2014 elegeram Erdogan para a chefia do Estado. O resultado do escrutínio atestou a existência de espaço político-eleitoral para uma sigla protagonizada pela minoria curda mas capaz de arrebatar simpatias entre o eleitorado democrático e progressista, aparentemente mais distante das fronteiras étnico-religiosas que tradicionalmente prevaleciam na matriz partidária da Turquia, dividida em organizações da maioria da população e das várias minorias, com destaque para a maior de todas – os curdos.
Os escândalos de corrupção envolvendo gradas figuras do AKP e as cisões internas na elite dominante, a contestação à crescente repressão e à deriva autoritária de Erdogan e do seu governo, bem como a defesa dos direitos de estratos sociais específicos como as mulheres, a juventude ou a comunidade LGBT, contribuíram para o sucesso do HDP, que rompeu com a fórmula até agora em vigor de integrar os representantes curdos no Partido da Paz e da Democracia, onde, aliás, tinham vários deputados num total de 36.
Regime
Por outro lado, as eleições legislativas na Turquia funcionaram como uma espécie de plebiscito ao projecto de Erdogan de alterar a Constituição do país. A mudança para um registo presidencialista com o consequente reforço das prerrogativas do cargo unipessoal, consubstanciava uma alteração significativa no regime turco, na esteira, aliás, da concentração de poder que o AKP tem vindo a implementar, da afronta aberta ao secularismo e laicidade do Estado, e da tentativa em curso de manipulação e tutela da magistratura.
Também neste âmbito, o HDP acumulou apoios e reclamou vitória, tanto mais que na sua declaração pós-eleitoral Demitras afirmou que «a Turquia regressou do limiar do precipício» tendo enterrado «o debate sobre a [instalação da] ditadura».
Não é expectável que Erdogan retroceda nos objectivos, conteúdo ou forma da sua regência. A sua presença nas reuniões executivas do governo turco é incomparável com a prática de anteriores presidentes. Durante a campanha eleitoral, não se absteve de apelar abertamente ao voto no AKP, participando em inaugurações ou em comícios, não raramente com o Corão na mão.
O ex-primeiro-ministro e actual presidente é mesmo apontado pelo HDP como um dos principais responsáveis pelo incitamento ao ódio contra o partido pró-curdo. No mais grave incidente durante a campanha eleitoral, ocorrido sexta-feira, 5, na região curda de Diyarbakir, duas bombas explodiram durante um comício matando duas pessoas e ferindo pelo menos outras 350, algumas das quais com gravidade.
Na mesma semana, um motorista de um carro de campanha do HDP foi morto a tiro por desconhecidos e centenas de indivíduos identificados com a direita nacionalista irromperam num comício do partido e provocaram violentos confrontos físicos.